O avanço global da pandemia de COVID-19, doença causada pelo novo coronavirus (SARS-Cov-2), vem trazendo insegurança, dúvidas e temor a toda a humanidade. Trata-se de um agente infeccioso de disseminação extremamente rápida, com altas taxas de infectividade e contra o qual não temos imunidade específica. Além disso, apresenta uma elevada capacidade de mutação, tornando difícil a elaboração de uma vacina eficaz. O teste diagnóstico padrão (detecção do material genético, o RNA viral, por meio de PCR em tempo real), apesar da alta especificidade, não apresenta sensibilidade ideal e a ela é variável conforme o momento da infecção em que o exame é coletado. Os testes rápidos sorológicos e detecção da antigenemia viral também sofrem variações em sua sensibilidade pelo mesmo motivo. Além dessas dificuldades técnicas, a testagem em massa não tem sido amplamente disponibilizada, não apenas no Brasil, mas na grande maioria dos países afetados, fazendo com que o real conhecimento da magnitude da pandemia e sua taxa de letalidade não sejam fidedignas até o momento.
Neste cenário, todos os médicos vêm sendo continuamente solicitados a esclarecer dúvidas de pacientes e de autoridades gestoras do sistema de saúde. Na busca por respostas e principalmente para embasar a melhor abordagem dos pacientes, a literatura médica tem produzido em tempo recorde grande quantidade de material sobre o agente infeccioso e a doença por ele produzida, gerando grande quantidade de informação que tem que ser lida, assimilada e analisada criticamente. Medicamentos vem sendo utilizados para o tratamento da COVID-19 com base em efeitos conhecidos em outras doenças e em estudos in vitro e em modelos animais, sendo sua efetividade na nova doença praticamente experimental, sem suporte em evidências científicas robustas, inviáveis devido à urgência que o momento exige. A droga que maior polêmica tem causado é a hidroxicloroquina (HCQ), velha e íntima conhecida dos reumatologistas, que a vem prescrevendo por pelo menos cinco décadas e cada vez mais frequentemente no tratamento das doenças reumáticas autoimunes, com excelentes resultados e baixa toxicidade. No entanto, na situação clínica de infecção viral, especialmente se em pacientes com comorbidades significativas e agudamente enfermos, sua relação risco/benefício não está determinada. O mecanismo de ação antiviral da HCQ é por interferir negativamente na ligação do vírus com uma proteína (a enzima conversora da angiotensina) expressa na superfície celular, reduzindo ou impedindo a entrada do patógeno na célula e, posteriormente, inibindo a replicação intracelular do vírus, além dos seus efeitos imunomodulatórios ainda não totalmente esclarecidos. Sabe-se que a HCQ interfere na expressão de receptores de ativação de células da imunidade inata e vias de sinalização intracelulares, com consequente redução de liberação de citocinas pró-inflamatórias (IL-6, TNF α, IL-1), assim como redução da expressão de debris celulares, fonte potencial de autoantígenos. Tais efeitos poderiam ser favoráveis no tratamento dos pacientes em fase inflamatória da doença, onde o maior dano é aquele causado pela resposta do hospedeiro ao agente infeccioso. Essa compreensão torna a HCQ uma candidata potencial ao tratamento da COVID-19. Aliados a dados in vitro mostrando eficácia antiviral, alguns pequenos estudos demonstraram o maior clareamento viral nos pacientes em uso da droga em comparação àqueles que utilizaram apenas o tratamento de suporte. No entanto, a qualidade metodológica de tais estudos é ruim e o número de pacientes testados muito pequeno para que se possa tirar conclusões definitivas. Estudos mais bem desenhados estão em andamento em diversos países, inclusive no Brasil, por iniciativa privada e governamental. No momento, os protocolos de tratamento da grande maioria das instituições em muitos países inclui a HCQ (associada ou não à azitromicina) como opção em pacientes hospitalizados, com quadros moderados a graves. Seu uso fora desse cenário, como tratamento de casos leves, ou logo após a manifestação de sintomas respiratórios, mesmo sem comprovação etiológica, e ainda, como agente profilático até mesmo como estratégia de manejo populacional, permanece sujeito a grande controvésia e inegavelmente sofre influência de vieses políticos que podem interferir de forma deletéria na tomada de decisões por parte dos gestores de saúde e mesmo dos médicos no cuidado a seus pacientes individualmente.
A síndrome clínica da angústia respiratória grave causada pela COVID-19, a principal apresentação da doença, evolui muitas vezes com uma ativação explosiva da cascata inflamatória, com destruição tecidual e elevadíssima mortalidade. Outros aspectos têm sido também observados, como eventos trombóticos em vasos de médio e grande calibre, assim como microangiopatia trombótica e isquemia periférica e visceral, evidenciando um estado de hipercoagulabilidade, fazendo diagnóstico diferencial com síndrome hemolítico urêmica e síndrome de ativação macrofágica. O reumatologista por vezes se depara com este cenário no contexto de diferenciação de tais quadros com a síndrome do anticorpo antifosfolípide catastrófica, coagulopatia autoimune que pode ter uma apresentação clínica semelhante. Além disso, têm sido recentemente descritos alguns casos de COVID-19 com a presença de tais anticorpos, levantando dúvidas em relação ao papel patogênico dos mesmos nesse contexto. A estratégia que tem sido incluída em alguns protocolos terapêuticos é a utilização da enoxaparina, até em doses terapêuticas em casos graves com elevação importante de biomarcadores como ferritina e D-dímero. O racional para tal conduta estaria embasado no efeito anti-inflamatório da droga sobre o endotélio vascular. São descritos também quadros gastrointestinais e cutâneos, além do envolvimento miocárdico, que lembram muitas outras situações clínicas diferenciais.
O reumatologista, por sua experiência clínica em lidar com doenças sistêmicas, comprometendo muitas vezes grave e simultaneamente diversos órgãos vitais, está acostumado a lidar com suas múltiplas apresentações clínicas e manejo terapêutico complexo. Em muitas ocasiões, nos deparamos com situações de pacientes graves onde necessitamos lançar mão de medicamentos e estratégias terapêuticas inovadoras e carentes de comprovação em evidências científicas robustas, como no cenário atual da COVID-19, na tentativa de salvar a vida do paciente. Assim, o reumatologista está habilitado e disposto a atuar conjuntamente com os colegas intensivistas, clínicos, pneumologistas e todos os outros especialistas envolvidos no cuidado aos pacientes portadores de COVID-19. Sabemos que nessa hora de crise e incertezas, o conhecimento e a experiência clínica adquirem especial valor.
Dra Adriana Fontes Zimmermann
CRM/SC 4120 RQE 4513
Médica reumatologista, membro da Sociedade Catarinense de Reumatologia